A quem interessa manter 100 milhões sem WhatsApp?

Mais uma vez, após duas anteriores decisões parecidas, o WhatsApp tem contra si uma sanção rígida e radical por descumprimento de ordem judicial e desrespeito ao Judiciário: A suspensão temporária de suas atividades. No Brasil até mesmo o diretor jurídico do provedor de aplicação já foi preso, pelo descumprimento de ordens judiciais.

A decisão do Magistrado vem amparada na Lei, pois prevista no inciso III do art. 12 do Marco Civil da Internet, diante do descumprimento dos parágrafos primeiro e segundo do art. 10 do mesmo dispositivo, vejamos:

Art. 10.  A guarda e a disponibilização dos registros de conexão e de acesso a aplicações de internet de que trata esta Lei, bem como de dados pessoais e do conteúdo de comunicações privadas, devem atender à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das partes direta ou indiretamente envolvidas.

1o O provedor responsável pela guarda somente será obrigado a disponibilizar os registros mencionados no caput, de forma autônoma ou associados a dados pessoais ou a outras informações que possam contribuir para a identificação do usuário ou do terminal, mediante ordem judicial, na forma do disposto na Seção IV deste Capítulo, respeitado o disposto no art. 7o.

2o O conteúdo das comunicações privadas somente poderá ser disponibilizado mediante ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer, respeitado o disposto nos incisos II e III do art. 7o.

Art. 12.  Sem prejuízo das demais sanções cíveis, criminais ou administrativas, as infrações às normas previstas nos arts. 10 e 11 ficam sujeitas, conforme o caso, às seguintes sanções, aplicadas de forma isolada ou cumulativa:

III – suspensão temporária das atividades que envolvam os atos previstos no art. 11; ou

Deste modo, a controvérsia reside no fato de que cabe à lei a regulamentação da guarda e fornecimento das “comunicações privadas”. Inexistindo a regulamentação, grande voz doutrinária entende que ao provedor de aplicações responsável pelo WhatsApp caberia apenas o fornecimento dos registros de acesso a aplicação, nada mais.

De fato, o Marco Civil permite interpretações variadas e não restam dúvidas que o bloqueio que interfere na vida de cidadãos, em que pese autorizado na lei, encontra ressalvas em seus próprios princípios. Não se questiona que trata-se de medida radical, ordenada a terceiros sem relação à lide e que prejudica uma coletividade, alheia ao caso concreto.

Poderia ser emanada diretamente à aplicação, para que adotasse medidas para bloquear o aplicativo, e só diante da recalcitrância, ordem às teles. Mais ainda, antes de tudo, poderia o Magistrado adotar outras medias previstas no Marco Civil, como a multa, sua majoração, dentre outros recursos que só afetariam efetivamente quem está descumprindo ordem judicial e não a sociedade.

Por outro lado, não se pode deixar de registrar que não é raro o descumprimento de ordens judiciais por parte de certos provedores de aplicação, em dezenas de casos na Justiça Brasileira, onde o descumprimento ocorre não somente em relação ao fornecimento de conteúdo de comunicações (onde poderia incidir alguma resistência, considerando a omissão do Marco Civil), mas em fornecer meros registros de acesso a aplicação, que aliás é previsão expressa do art. 15 do Marco Civil da Internet:

Art. 15.  O provedor de aplicações de internet constituído na forma de pessoa jurídica e que exerça essa atividade de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos deverá manter os respectivos registros de acesso a aplicações de internet, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de 6 (seis) meses, nos termos do regulamento.

É neste sentido que, em direção oposta aos outros episódios em que a ordem judicial fora reformada pela segunda instância, aqui, ao que parece, o desfecho será outro, considerando que o Tribunal de Justiça de Sergipe negou a liminar em mandado de segurança do WhatsApp Inc, mantendo a ordem de suspensão para clientes da TIM, Oi, VIVO, Claro e Nextel. (O mérito ainda será analisado, podendo ocorrer a reforma da decisão)

Na fundamentação que mantém a bloqueio o eminente Desembargador Cezário Siqueira Neto assim conclui:

“Há de ressaltar que o aplicativo, mesmo diante de um problema de tal magnitude, que já se arrasta desde o ano de 2015, e que podia impactar sobre milhões de usuários como ele mesmo afirma, nunca se sensibilizou em enviar especialistas para discutir com o magistrado e com as autoridades policiais interessadas sobre a viabilidade ou não da execução da medida. Preferiu a inércia, quiçá para causar o caos, e, com isso, pressionar o Judiciário a concordar com a sua vontade em não se submeter à legislação brasileira”

Estamos convictos que a situação e outras que irão surgir não podem ser resolvidas permitindo-se que extremos aconteçam ou na inércia necessária para que a população se volte contra o Judiciário, mas deve ser norteada por um diálogo, por medidas para minimizar os danos, por uma interação clara sobre os limites técnicos em relação ao que a aplicação custodia ou não. Isso se chama boa-fé.

Que se caminhe para resolução da situação observando os princípios constitucionais, a proporcionalidade e a lei, mas principalmente, que haja, por parte de todas as partes processuais (e não só pelo Judiciário, como muitos querem cravar) respeito para com os milhares de usuários prejudicados.

É realmente válido penalizar 100 milhões de usuários para proteger registros de acesso à aplicação de investigados por tráfico, solicitados por ordem de um Juiz competente, após fundamentada decisão, com amparo na Lei? É uma reflexão para a sociedade analisar.

Escrito por José Milagre

 

José Antonio Milagre é advogado especialista em Direito Digital, Perito em Informática. Mestre em Ciência da Informação pela UNESP, Presidente da Comissão de Direito Digital da OAB/SP Regional Lapa e autor do livro “Manual de Crimes Informáticos”, 2016, pela Editora Saraiva. www.facebook.com/professormilagre

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