Compreendendo os metaversos
Reproduções de capas de discos inéditas, certificados, artes, fotos, vídeos de jogadas como uma enterrada de basquete, são alguns exemplos de ativos digitais que podem ser livremente compartilhados na Internet. E se pudéssemos vendê-los com um “certificado de originalidade” ou um conjunto de metadados conectados ao item e que se assemelha a um “autógrafo” e reconhecimento do autor, atleta, clube ou titular dos direitos autorais sobre aquele item?
Agora, e se este item ou ativo valorizasse com o tempo e seu comprador pudesse revendê-lo, trocando-os por criptomoedas ou tokens que podem, por sua vez, serem trocados por outros ativos fungíveis e até convertidos em moeda comum.
Ou ainda, se para cada venda o smart contract (contrato eletrônico que executa e registra as transações na blockchain) repassasse parte ao titular dos direitos autorais ou personagem representado no vídeo ou foto? O mercado dos Non Fungible Tokens tem aquecido e promete uma explosão de negócios. Por itens não fungíveis entenda aquele que não pode ser substituído por outro da mesma espécie. A exemplo, um item digital exclusivo feito um criptoartista é único e somente o “titular da NFT” é que tem o comprovante de propriedade do item digital, em grossa analogia, como se fosse a escritura de um imóvel.
Conforme define a Lei 10.406/2001:
Art. 85. São fungíveis os móveis que podem substituir-se por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade.
Assim, colecionadores e interessados em projetos de tokenização podem comprar criptomoedas (tokens fungíveis) e a partir deles, trocar online por bens, ativos, NFTS e serviços.
E não é só! Agora imagine que artistas, clubes de futebol, game houses e empresas programassem softwares, games, mundos virtuais, o que vamos chamar de “metaversos” e nestes ambientes pessoas pudessem criar seus perfis, assim como uma rede social, e adquirir ativos intangíveis, itens, virtuais, pedaços de códigos com metadados e que também estão associados às NFTS, a partir da conexão de suas wallets (carteiras) e adição de fundos para a compra dos itens.
Com os metaversos, que transformam a internet em experiência imersiva, é possível que pessoas reais sejam representadas nestes mundos, e dada a natureza das NFTS, é possível criação de “itens únicos” por criadores, como réplicas de obras, terrenos, casas, arquitetura, veículos, dentre outros, em um negócio que vem se tornando absurdamente promissor, quer para programadores e criadores de itens, quer para negócios que exploram estas tecnologias e constroem projetos e metaversos.
Clubes de futebol já comercializam os produtos únicos, assim como a gigante NBA, que já negocia NFTS das grandes jogadas dos atletas. Shows já são organizados, com a venda e ingressos ligados a NFTS e onde a representação “virtual” dos artistas, autorizada pelos mesmos, mobiliza centenas de pessoas nestes ambientes e mundos virtuais.
E o que fazer do mercado de “real state”? O mercado imobiliário já se aquece, e começamos a ter acesso às primeiras plataformas de “shares” de imóveis, a partir da emissão de NFTS, aqui, consideradas “títulos de propriedade”. Além disso, metaversos já são criados para vendas de “representações virtuais” ou de espaços, terrenos, o que vamos chamar de “lands”.
Oportunidades
Basta lembrar que a Tokens.com, empresa focada em NFTS de imóveis no metaverso, comprou 50% da Metaverse Group, considerada uma das primeiras imobiliários virtuais do mundo, por milhões. Muitos negócios estão querendo chegar primeiro e comprar terrenos em metaversos com grande potencial de crescimento.
O Descentraland, metaverso cuja cripto é a MANA, já atraiu uma série marcas de luxo, e também já negocia receita por publicidade. De outra ordem, empresas como Wave, já organizam shows nos metaversos, com modelo de negócios baseado em venda de itens virtuais, patrocínios e exposição de marcas.
De acordo com a Gray Scale, o mercado global de bens e serviços no metaverso em breve valerá US$ 1 trilhão. Mas ainda tem dúvidas sobre o que seja o metaverso? Imagine como um território digital, uma cidade virtual, 3D, assim como o conhecido Second Life, e onde avatares se relacionam, interagem, jogam. A tendência é que muitos escritórios virtuais surjam nos metaversos e isso gere receita real, com vendas, experiências, shows, grupos, networking.
Recentemente, foi noticiado um NFT de Iate Virtual para metaverso vendido por R$ 3,6 milhões no jogo The Sand Box, outro mundo que vem se destacando.
Natureza jurídica e direitos dos compradores
Todas estas tecnologias que prometem prover novas oportunidades, por outro lado, merecerem, análise cuidadosa de riscos e sobre os direitos ligados aos atores que participam do processo de tokenização. Não é preciso ser vidente para constarmos que muitos projetos surgirão com o único objetivo de pegar o dinheiro de pessoas e sumir. Já representamos investidores que confiarem em projetos inovadores e que com a velocidade em que angariaram fundos, desapareceram.
Logicamente, por trás destas maravilhas envolvendo gameficação, criação de metaversos e colecionáveis, existem uma série de questões regulatórias e jurídicas que não podem ser desconsideradas e que certamente podem representar grandes prejuízos para o bolso e reputação de negócios e projetos que nascem sem compliance e estrutura mínima.
Uma forma de provar a posse de um ativo digital no metaverso é o registro de onde ele se encontra. Neste sentido, juridicamente, se trata de um bem digital, representado por uma codificação. A mesma tecnologia para evitar-se double spending, que assegura as transações em bitcoins, também serve de base para assegurar as transferências de NFTS, comumente transacionadas na Blockchain Ethereum. De imediato, vale alertar que a princípio, comprar um NFT não significa que o comprador terá direitos de propriedade intelectual. Se você compra um quadro, você é dono do quadro e tem alguns direitos, mas não significa o direito de propriedade intelectual sobre o mesmo.
Assim, a orientação fundamental é, antes de ingressar em qualquer projeto, analisar documentação, white paper, termos, auditorias feitas do código fonte e os contratos e termos de uso, para entender quais seus direitos e garantias e não pense que o silencio significa autorização para uso irrestrito do ativo.
A partir da compra das moedas dos metaversos pode-se adquirir as NFTS, que no caso, estão juridicamente ligadas a perspectiva de partes fracionadas ou propriedade de parte de um ativo, como no caso da compra de terrenos. Ainda, uma oportunidade de uso das terras está ligada a locação dos espaços, mediante contratos entre proprietários e interessados. Cada pedaço de terra equivale a uma NFT.
Normalmente, os metaversos não transferem direitos intelectuais com o oferecimento de itens. Por outro lado, nada impede, por exemplo, que as NFTS também estejam ligadas cessão de partes de direitos, direito a royalties para compradores e licenciamento de direitos autorais.
Compliance de negócios de metaversos e projetos de tokenização
São inúmeras possibilidades jurídicas que podem ser inseridas no modelo de negócios de projetos de tokenização. Como visto, as NFTS em tese conferem o direito de propriedade sobre a própria NFT, algo único, e de impedir que outros informem que o possuem. Por outro lado, é importante observar as garantias que o metaverso oferece em relação a continuidade dos serviços e dos itens. O que seria se um metaverso sumisse ou criadores não honrassem o contrato? E se ele não for pra frente? Por isso mesmo, os colecionáveis, ficam registrados em um servidor IPFS, para evitar que o emitente removesse os ativos e quebrasse a confiança.
Neste contexto, quer para o criador, usuário, ou para empreendedores de projetos, o estabelecimento e conhecimento prévio de cláusulas que regem o metaverso é fundamental, e pode evitar muitos transtornos. Algumas cláusulas importantes e comuns nos metaversos e que devem ser observadas são:
a) Qual o software deve ser usado para desenvolvimento dos ativos e itens;
b) Os ativos e itens devem estar de acordo com as especificações de metadados; A exemplo, existem campos de metadados que definem quais os usos permitidos para o ativo e que devem ser cadastrados pelo criador;
c) Ativos “copias” ou “piratas” serão removidos e contas podem ser bloqueadas;
d) Ativos podem ser removidos se forem considerando ofensivos, ilegais;
e) Normalmente não se permite publicar o ativo em outro lugar;
d) Os criadores são responsáveis por cumprirem a lei, direitos autorais, regras tributárias;
f) Os usuários do metaverso não recebem uma licença ilimitada para uso do sistema, mas, por outro lado, são considerados donos dos ativos criados;
e) Usuários finais que compram os ativos possuem o NFT subjacente e comumente recebem o direito de vender, negociar, doar, dar, transferir ou de outra forma dispor do NFT como acharem adequado; desde que, no entanto, cada ativo seja tokenizado para que tenha escassez comprovável e prova de propriedade;
f) O criador do ativo continua com os direitos autorais, o que impede os compradores de usarem o ativo com fins comerciais, a exemplo, licenciamento em novos produtos;
g) O usuário não deve praticar condutas que afetem o sistema e é responsável em arcar com os riscos ligados a seus ativos e jogos;
h) O metaverso reserva-se no direito de remover ativos e jogos dos serviços, diante de violação e neste sentido, é preciso se investigar como ficarão os direitos dos adquirentes que compraram os ativos irregulares, como adquirentes de boa-fé;
i) Cláusula de isenção de responsabilidade da plataforma, em caso de litígios envolvendo direitos autorais, imagem, dentre outros. Esta cláusula, aliás, pode ser considerada nula pela Justiça, considerando que a plataforma deve adotar medidas cabíveis para reduzir a contrafação e uso indevido de conteúdo;
j) Cláusula de limitação de garantia “AS IS” e “AS AVAILABLE”, e ausência de garantia de operação dos serviços. Esta também é uma cláusula polêmica que pode ser anulada com base nos princípios ligados ao Código de Defesa do Consumidor (Lei 8078/1990);
k) Cláusula de encerramento dos serviços, onde, a qualquer momento, o metaverso informa que poderá interromper os serviços, proibir novos uploads e acesso aos serviços desde que mantenha a propriedade dos ativos e jogos. Questão que precisa ser de conhecimento prévio é qual a utilidade do ativo para seu dono, se o metaverso for descontinuado e quais os deveres da plataforma, neste sentido.
Perspectivas e desafios jurídicos
Como visto, a planejamento e análise de risco de projetos, bem como das garantias legais e direitos é fundamental, o que permitirá maior segurança na operação e compras de ativos de metaversos, com vistas a negócios como locação, construção de casas, realização de eventos, posse para valorização, dentre outros. Muitas questões ainda deverão ser enfrentadas, quando o assunto são NFTS e metaversos. Citamos algumas:
Mercados intermediários serão responsáveis por tokens fraudulentos?
Os NFTS poderão ser considerados criptomoedas para fins tributários? Deveríamos declarar ativos virtuais da mesma forma que se declara criptomoedas? Os metaversos se equiparam à Exchanges para fins legais?
Como agir se criarem avatares de pessoas, sem a autorização destas?
Como registrar a prova e obter registros de acesso à aplicação diante de crimes, golpes e fraudes praticados nas plataformas?
Como assegurar que proprietários de terrenos efetivamente recebam por tudo que ocorre nestes locais?
Como estruturar fundos de investimentos imobiliários focados no metaverso?
O que proceder se uma plataforma aceitou emissão de NFTS a partir de pessoas sem os direitos sobre o item representado?
Com assegurar que os ativos não fungíveis sejam mantidos mesmos após eventual encerramento da plataforma ou como será a reparação dos titulares e compradores?
Como assegurar e planejar para que as transações imobiliárias virtuais, como compra de frações reais asseguradas por NFTS, reflitam os direitos no mundo real de forma segura?
Como coibir fraudes de itens virtuais de imóveis reais, sem autorização de seus proprietários?
Como estabelecer contratos efetivos para que participações individuais em obras coletivas tokenizadas sejam remuneradas?
Conclusões
Como visto, os metaversos estão crescendo absurdamente e inauguram uma nova era ligada a novos negócios digitais, com incríveis oportunidades. Do mesmo modo, inúmeros riscos também se intensificarão, além de inúmeras questões ligadas a direitos e autores, criadores e proprietários de itens.
Sem pretensão alguma de exaurir o tema, apresentamos apenas algumas das questões que surgirão e que demandarão a análise de advogados especializados em criptomoedas.
Aos que pretendem criar plataformas, o planejamento jurídico de metaversos é fundamental, e deve considerar legislação e cenário regulatório local, para segurança dos empreendedores e dos clientes. Definições importantes precisam ser registradas. A exemplo, a The Sand Box deixa claro que os designers continuam com 100% dos direitos autorais dos jogos que fazem e publicam no metaverso, desde que não violem normas autorais de terceiros. O mesmo metaverso define que a atividade de locação de terreno não transfere o “jogo” para o locador.
Para usuários destas plataformas e compradores de ativos, vale as orientações para análise do projeto, termos de uso e garantias, antes de qualquer aporte, bem como checar a empresa por trás dos games. Com os cuidados adequados, não restam dúvidas que inúmeras oportunidades rentáveis surgirão com a dupla metaverso e NFTS.
José Antonio Milagre
Advogado especialista em Direito Digital e Criptomoedas, Sócio do José Milagre & Associados. Presidente de Instituto de Defesa do Cidadão na Internet – IDCIBrasil, Analista de Sistemas, Mestre e Doutor pela UNESP, DPO Exin, PECB Lead Implementer, e Diretor do PrivacyOffice, grupo de privacidade e proteção de dados da CyberExperts. http://www.youtube.com/josemilagre