José Antonio Milagre
A pandemia do Coronavírus mobilizou inúmeras campanhas para que as pessoas “permanecessem em casa”, no conceito de isolamento social. É de fato muito adequado a quem tem renda garantida, em uma relação formal de emprego, ficar em casa, tendo seus direitos trabalhistas honrados pelo empregador (ressalvados os que vem demitindo colaboradores). A questão é que o Brasil milhões de trabalhadores por conta própria.
Os autônomos dependem do seu próprio esforço para que mantenham a renda. No Brasil, o Ministro Paulo Guedes anunciou um auxílio aos autônomos e informais de até R$ 200, sendo que receberão os que contribuem para o INSS. É inegável que os motoristas de aplicativos estão sendo muito impactados. Neste momento, as empresas de aplicativos precisam tomar iniciativas. A UBER, por exemplo, anunciou que irá auxiliar os diagnosticados ou com suspeitas e que estiverem de quarentena, envolvendo o pagamento da média dos rendimentos dos últimos seis meses do motorista. Anunciou ainda que também irá remunerar contas suspensas por confirmação de COVID-19.
O que não se sabe é o que será dos mais de 850 mil motoristas do aplicativo que, sem poder cumprir determinações das autoridades de saúde, pois precisam sobreviver, permanecem nas ruas. E quanto aos que sofrem com as cidades desertas e queda brutal das corridas? Em áreas afetadas as quedas já chegam a 70%.
Nos Estados Unidos, projeto de Lei que protege os trabalhadores é aprovado na Câmara também sem contemplar estes profissionais, o que se espera seja modificado no Senado. Nestes contratos (entre profissionais e aplicativos), não existe adicional por insalubridade, muito menos pressão para regular as horas trabalhadas, sendo que recentemente o Uber estabeleceu o máximo de 12 horas diárias, o que não significa “jornada”. Não temos dúvidas que estamos sendo ainda mais expostos a novos pontos inerentes à flexibilização do trabalho trazidos pelos Apps, onde o Estado é mínimo. A questão é controversa e precisa de um ponto de equilíbrio.
De fato, a questão envolvendo profissionais que trabalham com Uber, Rappi, Ifood, 99, dentre outros, em momento de uma pandemia, reabre as discussões sobre as proteções legais mínimas necessárias. Lembrando que em fevereiro o TST rejeitou o vínculo trabalhista pedido por um motorista de Uber, logo, estes profissionais não possuem uma série de direitos, como décimo terceiro e férias. Na Califórnia, no entanto, o Projeto de Lei 5 caminha e pode converter os contratados independentes em funcionários com benefícios.
Aqui, no entanto, prevalece a inexistência de vínculo trabalhista entre estes profissionais e os aplicativos. Por outro lado, a indiferença quanto aos riscos que os trabalhadores estão correndo por se exporem, realizando atividades essenciais a quem está em casa, seguro ou para com aqueles que tiveram sua fonte de renda e sustento reduzida pela alteração da dinâmica nas cidades, não pode passar despercebida pela sociedade, a qual dita a popularidades dos aplicativos e principalmente, não se encontra excluída da esfera de atuação judicial.
Nos Estados Unidos, os motoristas já processam o aplicativo com o acionamento à procuradoria geral de Massachusetts, pela queda do volume de trabalho. Buscam uma proteção para este momento. Já se cogita até um pedido de moção legal de emergência, pedindo que o Tribunal conceda liminar para que reconheça os direitos dos motoristas a uma licença médica paga, o que poderia reclassificar os profissionais de “motoristas independentes” a “trabalhadores com benefícios”.
Talvez por isso, alguns Apps começaram a agir, preventivamente, com medidas que demonstram preocupação com este número imenso de pessoas que acreditaram no modelo de negócios, muitas vezes deixando a formalidade, e que sem estas, nenhum aplicativo teria sucesso. Não será bom a formação de uma Jurisprudência brasileira que responsabilize os Apps por danos experimentados por motoristas durante a fase de calamidade pública experimentada. Ela poderá ser a base para novas demandas envolvendo outras e futuras situações.
Fomos apresentados à mais um dos riscos desse modelo auto empreendedor, desregulado e com lacunas de proteções sociais. Outros ainda não podem ser vistos ou mensurados, mas existem. Esta é uma questão de interesse não só dos autônomos, mas de toda a sociedade e autoridades. O evento triste do COVID-19 serve para provocar a discussão sobre a classificação dos aplicativos no cenário Jurídico e se realmente devem ser desobrigados de qualquer responsabilidade social em relação às pessoas que o utilizam para seu sustento. A “gig economy” lutou durante anos para não classificar seus trabalhadores como empregados, apregoando que estavam criando a “nova era do trabalho” e que as regras antiquadas já não cabiam mais. O caso COVID-19, ao que parece, mostra que não é bem assim e que muito ainda deve discutido a respeito.
José Antonio Milagre é advogado especialista em Direito Digital e Aplicativos. Mestre e Doutorando pela UNESP. Fundador do Instituto de Defesa do Cidadão na Internet (IDCI) E-mail: [email protected]
Fantástico, parabéns pela iniciativa de respeito à estes profissionais!