A descentralização do sistema das criptomoedas tem levantado no mundo uma série de desafios acerca da possibilidade utilização do sistema por cibercriminosos, notadamente em questões envolvendo lavagem de dinheiro. Alguns países do mundo, aliás, partiram para a regulamentação especificamente da questão envolvendo o uso indevido para a lavagem. Outros países continuam observando o desenvolvimento e implicações do uso das criptomoedas.
Porém, ao contrário do que muitos imaginam, embora as transações de criptomoedas possam ser consideradas “seguras” ou privadas, já se discute na comunidade científica e acadêmica técnicas forenses para investigações envolvendo o tema. Do mesmo modo, alguns casos já reportados de investigações com sucesso envolvendo uso indevido de criptomoedas ou para finalidades criminosas. Sara Meiklejohn et al. escreveram a pesquisa “A Fistful of Bitcoins: Characterizing Payments Among Men with No Names”[1] onde apresentam desafios para localizar o uso de Bitcoin para atividades criminais e fraudulentas. Michael Doran (2015), propôs em seu paper “A forensic look at bitcoin cryptocuyrrency” [2] a análise de um sistema apreendido, envolvendo clonagem de HD, memória e outros artefatos, tendo recuperando informações sobre a mineração de moedas e até mesmo sobre aplicações de carteira virtual, tendo ainda recuperado transações realizadas pelos aplicativos Wallets. A análise de memória RAM corroborou inclusive os endereços dos bitcoin wallets.
A experiência foi feita com Bitminer, ferramenta de mineração, Multibit, carteira Bitcoin para Windows, Bitcoin-QT, outro Bitcoin Wallet e as ferramentas forenses Encase 6.19.7, Tableau, Internet Evidence Finder e Winen.exe para coleta de memória.
No mundo, iniciativas como ChainAnalysys [3] atuam prestando soluções forenses contra a lavagem de dinheiro em Bitcoins. A ferramenta Reactor promete rastrear os criminosos digitais. Por sua vez, a empresa Elliptic [4] oferece serviços de detecção de atividades ilegais na cadeia de Bitcoin, tendo se unido a LexisNexis e também a Internet Watch Foundation (IWF) para combater aqueles que usam bitcoins para comprar conteúdos audiovisuais de pornografia infantil online.
O serviço consegue cavar através de suspeitos e ligar transações em conjunto para determinar para onde o dinheiro está se movendo. Do mesmo modo, criminosos já respondem por crimes praticados em uso ao Bitcoin. Ross Ulbricht, um americano de 31 anos, que criou a SilkRoad, um mercado Bitcoin que facilitou a venda de um bilhão de dólares em drogas ilegais, foi condenado à prisão perpétua em fevereiro de 2015. Pelo mundo, inúmeras outras pessoas apreendidas por lavagem e dinheiro. Como se sabe, a maioria das pessoas usam os Bitcoins de forma legal, mas o suposto anonimato também pode ser considerado uma arma para usos indevidos.
O consultor geral do FBI Breth Nigh chegou a dizer em setembro de 2015 que os investigadores já podem “seguir o dinheiro”. Bitcoins podem ser considerados quantidades associadas a endereços como por exemplo “1Ez69SnzzmePmZX3WpEzMKTrcBF2gpNQ55” representando 30.000 bitcoins apreendidos na SilkRoad, o que equivaleria a 20 milhões de dólares à época e que aparentemente foi leiloado pelo Governo Norte-Americano.
Todas as transações são de conhecimento público. A propriedade de cada Bitcoin é registrada na cadeia de blocos ou blockchain. De fato, o que pode permanecer oculto é a verdadeira identidade dos proprietários dos Bitcoins, pois estes não cadastram nomes, mas uma sequencia numérica que os identifica na cadeia de blocos. Por outro lado, assim que um bitcoin é gasto, uma trilha ou processo forense pode se iniciar. No caso do SilkRoad os investigadores precisavam descobrir os IPs associados às transações, porém estavam diante de um desafio pois os usuários bitcoin estão conectados em uma rede peer-to-peer. Neste caso, apurar a autoria do crime se deu por um descuido do mantenedor do serviço e não por falha na segurança na cadeia.
Porém outras iniciativas de sucesso na recuperação de dados de conexão já foram reportadas: Em 2014 estudantes de pós-graduação na Penn State criaram uma versão de software para vendedores e compradores de bitcoins, uma espécie de “espiamule das moedas”, com o escopo de verificar tudo que acontecia. Eles conseguiram mapear endereços de IP de mais de 1000 endereços Bitcoin tendo inclusive divulgado a técnica em um paper denominado “An Analysis of Anonymity in Bitcoin Using P2P Network Traffic” [5]
Esta pesquisa nos apresenta uma reflexão importante sobre “o outro lado da moeda” do “pseduo-anominato” das transações em bitcoins. Se você prender um traficante de drogas nas ruas, você pegou um criminoso praticando um crime. Agora se você conseguir prender o mesmo criminoso usando alguns serviço atrelado a bitcoins, você pode descobrir todo o seu histórico delituoso, sua contabilidade. Em síntese, é preciso alertar que se há 2 (dois) anos atrás muitos se vangloriavam do total anonimato proporcionado nas transações bitcoin, hoje esta certeza não é mais absoluta, como aliás, nada é cem por cento seguro e tudo depende dos elos da corrente. Logicamente, esta é uma discussão longe de se finalizar e que envolve muitas forças.
Estuda-se sobre a criação de outras criptomoedas baseadas em estruturas mais “anônimas” (como a Shadow [6] e iniciativa ZeroCoin [7]) e até mesmo a possibilidade de alguns governos lançarem suas criptomoedas, logicamente, sem qualquer privacidade. Já se fala em técnicas “antiforense” como misturadores ou mixers, dark wallets, dentre outras. Já se fala em práticas que reduzem a privacidade, como a reutilização de endereços, bem como dos riscos de se manter chaves privadas em computadores, sujeitos às mais variadas ameaças (Já se apresenta até mesmo o Trezor [8], um hardware para armazenar as chaves e que seria mais seguro).
Nesta busca pela privacidade, a tentativa de se anonimizar pode tapar a cabeça e destapar os pés, como alertou Alex Biyukov e Ivan Pustogarov em “Bitcoin over Tor insn’t a good idea”[9], ao aplicarem que a utilização de Bitcoins sobre TOR pode dar brechas a inúmeras outras falhas de segurança.
Como visto, a propriedade de Bitcoins pode ser extremamente difícil de se provar, considerando inúmeros fatores, bem como que a chave privada pode estar nas mãos de terceiros, ocultada ou armazenada de várias maneiras, não existindo, em um primeiro momento, dada a descentralização da cadeia, um lugar para endereçar uma ordem judicial para quebra de IPs de um usuário. Por outro lado, considerando as pesquisas e experimentos em andamento pelo mundo, não se pode mais afirmar com 100% de segurança que criminosos podem se ocultar tranquilamente por trás da plataforma. Grandes são os esforços e iniciativas para aprimorar a privacidade e anonimizar o ambiente, assim como inúmeros são os projetos e pesquisas no escopo de fornecer elementos para condução de perícias, investigações e trilhas de rastreamento de transações usadas para prática de crimes ou para finalidades ilícitas.
Referências
[1] https://cseweb.ucsd.edu/~smeiklejohn/files/imc13.pdf
[2] https://www.sans.org/reading-room/whitepapers/forensics/forensic-bitcoin-cryptocurrency-36437
[3] https://www.chainalysis.com/
[5] https://pdfs.semanticscholar.org/c277/62257f068fdbb2ad34e8f787d8af13fac7d1.pdf
[6] https://shadowproject.io/en
[8] https://shop.trezor.io/?a=6x7dt4qkzfir
[9] https://arxiv.org/abs/1410.6079
José Antonio Milagre
Advogado. Perito em Informática. Mestre e Doutorando em Ciência da Informação pela UNESP, Coordenador da Pós-Graduação em Computação Forense pelo ESB – Brasília. Árbitro de tecnologia da CIAMTEC.br
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09.05.2017