Era novembro de 2013 quando duas jovens brasileiras cometeram suicídio, na mesma semana, pelo mesmo motivo. Adolescentes de 16 e 17 anos, elas haviam sido vítimas da chamada “vingança pornô” – a divulgação de fotos, áudios ou vídeos íntimos por ex-companheiros sem consentimento.
Naquele mesmo ano, entrou na pauta da Câmara Federal um projeto de lei para enquadrar este tipo de crime na Lei Maria da Penha. De autoria do deputado João Arruda (PMDB-PR), a proposta, agora, foi aprovada em plenário e segue para apreciação do Senado.
A novidade, no Dia Internacional da Mulher, é avaliada como positiva por agentes envolvidos diretamente com crimes digitais e os direitos femininos, que veem nela uma atualização da Lei Maria da Penha, criada em 2006, às transformações da sociedade.
Pelo texto do projeto, torna-se mais uma forma de violência doméstica contra a mulher “a violação da sua intimidade, entendida como a divulgação por meio da Internet, ou em qualquer outro meio de propagação da informação, sem o seu expresso consentimento, de imagens, informações, dados pessoais, vídeos, áudios, montagens ou fotocomposições da mulher, obtidos no âmbito de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade”.
Com a inclusão deste inciso na Lei Maria da Penha, quem praticar a chamada “vingança pornô” – que recebe outros nomes, como “pornografia de revanche” – poderá ser condenado a até três anos de detenção. Ainda de acordo com a proposta, após determinação judicial, a remoção do conteúdo pelo provedor onde a ofensa foi publicada deverá ocorrer em até 24 horas.
Hoje, segundo o delegado de polícia e professor universitário Eron Veríssimo Gimenes, as vítimas podem processar os seus agressores virtuais por difamação e injúria, que não preveem pena superior a um ano de prisão, cada, além de multa. “Com a nova proposta, as mulheres podem ganhar mais uma ferramenta de proteção mais rápida, além de a pena ser maior e não poder ser convertida em doação de cestas básicas”, analisa ele, que também é autor do livro “Lei Maria da Penha Explicada – Doutrina e Prática”, em parceria com a titular da Delegacia de Defesa da Mulher (DDM), Priscila Bianchini Priscila e o professor Eduardo Henrique Alferes.
‘VIDAS DEVASTADAS’
Segundo Eron, pesquisas apontam que mais de metade das mulheres brasileiras já foram vítimas de vazamento de material digital íntimo na Internet. Especialista em direito digital que atua na Capital, o advogado José Antônio Milagre conta receber de três a quatro casos novos por semana de vítimas de crimes desta natureza.
“E 90% são mulheres, de idades que vão de 14 a 60 anos, que têm sua intimidade exposta por vingança em redes sociais ou aplicativos de troca de mensagens após o término de um relacionamento. Elas têm suas vidas devastadas, muitas vezes foram ameaçadas e até extorquidas antes do compartilhamento e algumas, depois, se viram obrigadas a mudar de cidade tamanha a dificuldade para seguir com suas vidas”, pontua Milagre.
Gimenes completa. “Além de causar pânico, a intenção nestas situações é humilhar a mulher, que pode sofrer consequências graves, como quadros de depressão que podem levar ao suicídio. É um caso de saúde pública e, por isso, a relevância de ampliar o rigor sobre este tipo de crime”.
Quem repassa também comete crime
O advogado José Antônio Milagre explica que não apenas a primeira pessoa que fez a divulgação de conteúdos íntimos por vingança pode ser responsabilizada criminalmente. Quem coopera para o compartilhamento de vídeos, imagens e áudios desta natureza também pode ser penalizado.
“Hoje, além de responder por crime de difamação, a pessoa pode ser processada na esfera cível. Já tive processos com mais de 20 réus, que imaginavam estar seguros, agindo no anonimato”, pontua, salientando que as indenizações, em casos de “pornografia de revanche”, podem chegar a R$ 600 mil, dependendo das circunstâncias, do tipo de material e da idade das vítimas envolvidas.
Mas, mesmo com o Marco Civil da Internet, criado em 2014 para obrigar provedores a identificar autores e retirar conteúdos do ar, Milagre observa que as empresas donas de aplicativos de mensagens no Brasil ainda resistem em cumprir decisões judiciais, principalmente quanto à quebra de sigilo de dados daqueles que compartilharam os arquivos.
“É diferente do que ocorre nos Estados Unidos, por exemplo. Lá, a autoridade policial expede uma ordem online e o aplicativo fica automaticamente proibido de permitir o compartilhamento daquele arquivo que já está em sua base de dados”, pontua.
Já quando as imagens ou vídeos vão parar em redes sociais ou em sites de relacionamentos, de pornografia ou prostituição, normalmente a retirada ocorre de maneira rápida – em torno de 24 horas, como pretende estabelecer o projeto de lei que tramitou na Câmara dos Deputados. “E, no máximo em 72 horas, já temos os dados cadastrais da pessoa que estava por trás da conta usada para postar os arquivos da vítima”, cita.
Dano moral
Titular da DDM, Priscila Bianchini relata que é pequeno o número de casos que chega à Polícia Civil, muito em função da pena branda prevista para quem comete crime de difamação ou injúria. Ela lembra, contudo, que a Lei Maria da Penha já reconhece como violência doméstica também o “dano moral” causado às mulheres por seus agressores.
“E é possível enquadrar como dano moral os prejuízos causados às vítimas que têm imagens suas divulgadas na Internet. Mas, de qualquer forma, a iniciativa é válida, porque especificar este tipo de crime na lei pode contribuir para inibir este tipo de comportamento”, pontua.
Vale ressaltar que a Lei Maria da Penha protege vítimas maiores de 18 anos, já que, abaixo desta faixa etária, elas são acolhidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). No artigo 241, a pena para quem vende ou divulga fotos, vídeos ou outros registros de cenas íntimas das vítimas é de quatro a oito anos de reclusão, além de multa.
Como, mesmo fazendo uso de todos os meios legais possíveis, não é possível garantir que os conteúdos jamais retornem à Internet, a recomendação dos especialistas é evitar produzir e enviar “nudes” para terceiros ou concordar em participar de gravações de cenas íntimas.
Carolina Dieckmann
Em 2012, a atriz Carolina Dieckmann teve fotos íntimas copiadas de seu computador pessoal e divulgadas na internet. O caso, que teve prisões na nossa região, deu origem à lei de mesmo nome, que foi aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pela presidente Dilma Rousseff naquele mesmo ano. A norma, que trata da invasão de equipamentos de informática e interceptação ilegal de conteúdos, prevê pena de prisão de até cinco anos, mas não se aplica aos casos em que imagens ou vídeos tenham sido gravados com o consentimento da vítima e divulgados sem sua autorização.
Link da Reportagem: JCNET.com.br
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