Direitos Trabalhistas dos Cyberatletas e a Regulação dos e-Sports no Brasil

O Brasil é o maior mercado de games da América Latina e o 10º maior do mundo, com 70,1% da população afirmando jogar algum tipo de jogo eletrônico, segundo a Pesquisa Game Brasil (PGB) 2023. O mercado de e-Sports no país continua a crescer, com a PwC estimando que a receita de videogames e e-Sports no Brasil alcance US$ 2,8 bilhões (aproximadamente R$ 13 bilhões) até 2026, representando 47,4% da receita da América Latina

É muito comum que gamers atuem de forma exclusiva para times, momento em que as dúvidas trabalhistas podem surgir. Qual é a relação entre gamers e times. Se trata de uma relação de emprego ou prestação de serviços?

É importante destacar, de imediato, que geralmente, aplicam-se as leis trabalhistas aos profissionais de games. O contrato deve prever as questões ligadas a atividades desenvolvidas, regime, bem como ao direito de imagem.

Embora normalmente os profissionais de games recebam contratos prontos de times e empregadores, que buscam comumente afastar o vínculo, é inegável que tais contratos podem ser questionados em juízo, sobretudo em relação às percepções de direito de imagem.

Deste modo, não é incomum que gamers façam longas e cansativas jornadas, ou mesmo tenham que viver em gaming houses, estando à disposição do time. Todas estas mudanças e exigências cumpridas enaltecem a nítida relação de emprego. Em alguns casos, é comum até mesmo o estabelecimento de metas para estes profissionais.

Neste contexto, em que pese muitas empresas e times tentem contratar na modalidade  prestação de serviços, é evidente que os elementos da relação empregatícia se fazem presentes na atuação dos atletas de games, sendo eles, pessoalidade, onerosidade, não eventualidade e subordinação. A este respeito, já decidiu o Tribunal Regional do Trabalho da 1ª. Região, vejamos:

DO RECONHECIMENTO DO VÍNCULO EMPREGATÍCIO, COM DATA DE ADMISSÃO EM 18/12/2017, NA FUNÇÃO DE ATLETA PROFISSIONAL DE E-SPORTS, PERCEBENDO A REMUNERAÇÃO MENSAL DE R$970,00, COM DISPENSA IMOTIVADA EM 17/12/2018, BEM COMO DA ANOTAÇÃO DA CTPS DA PARTE AUTORA

Procedente.

Sustenta a parte autora que celebrou um contrato de trabalho com a reclamada, com data de admissão em 18/12/2017, para o exercício da função de atleta profissional de E-sports, com remuneração mensal de R$970,00 e dispensa imotivada em 17/12/2018. Esclarece que nunca foi escalado para jogar no time titular, permanecendo sempre na reserva, conforme prova documental anexada aos autos.

Em defesa, a reclamada apresenta impugnação especificada, informando que no ano de 2017, a reclamada, com o intuito de ingressar como participante na modalidade de esporte eletrônico, abriu processo seletivo para o público, no dia 10 de outubro de 2017, oportunidade em que o reclamante, assim como outros jogadores de games, se inscreveram.

Assinatura de Futuro Contrato de Trabalho de Atleta Profissional de E-Sports, caso do reclamante, todavia a assinatura deste Termo não caracteriza a contratação de fato, mas sim um Termo de Compromisso para assinatura de futuro contrato de trabalho. Assim sendo, alega a reclamada que o fato de o reclamante ter assinado o referido termo, não quer dizer que ocorreu, de fato, sua contratação. A reclamada afirma que tal contrato de trabalho jamais se concretizou, esclarecendo que após melhor análise da equipe técnica, a reclamada optou pela contratação de outros jogadores, que apresentaram melhores rendimentos à época, como foi o caso do Atleta, conhecido como “xxxxxxxxxxx”, o qual tivera seu vínculo empregatício anotado pelo Clube.

Em depoimento pessoal, o reclamante esclarece que do período de 2017 até dezembro de 2018 somente atuou para equipe do Xxxxxxxxxxxxx, sendo que além do compromisso de contratação futura, o reclamante assinou um contrato digital com o Xxxxxxxxxxxxxx o. Menciona que foi contratado para ser um jogador digital do clube do Xxxxxxxxxxxxxxx, especificamente LEAGUE OF LEGENDS, cujas atribuições eram de um jogador de futebol virtual, já que os jogos eram através de um computador. Não chegou a atuar em nenhum jogo, tendo sido escalado como reserva, existindo no site LOLGAMEPIDIA o registro dos jogadores que atuaram e o registro dos jogadores que ficaram na reserva. Afirma que foi escalado como reserva no campeonato denominado CIRCUITO DESAFIANTE, não tendo recebido nenhum valor em pecúnia da reclamada.

Dito isto, passo à apreciação.

Esclarece este Juízo que para ser reconhecido o vínculo empregatício devem ser preenchidos os requisitos dos arts. 2º e 3º da CLT, quais sejam, pessoalidade, subordinação, onerosidade, habitualidade e alteridade.

O Termo de Compromisso de Assinatura de Futuro Contrato de Trabalho de Atleta Profissional de E-Sports prevê a celebração de um contrato por prazo determinado, no período de 18/12/2017 a 17/12/2018, para o exercício da função de atleta e remuneração mensal de R$970,00.

Apesar de a reclamada não negar a participação no campeonato denominado CIRCUITO DESAFIANTE, razão, inclusive, deste Juízo determinar que as partes juntassem aos autos todos os registros relativos aos jogadores que atuaram no time titular, bem como no time reserva, a reclamada limitou-se a impugnar a documentação anexada pela parte autora, não anexando a escalação dos seus jogadores neste campeonato, data maxima venia.

Note-se que os documentos anexados aos autos pela parte autora comprovam que o reclamante foi escalado para o time reserva desses jogos, representando o Clube xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx, cabendo à parte ré a contraprova, do qual não se desincumbiu.

Com efeito, reconhece-se o vínculo empregatício da parte autora com a reclamada através de um contrato por prazo determinado, com data de admissão em 18/12/2017, para o exercício da função de atleta, percebendo a remuneração mensal de R$970,00 e término do contrato em 17/12/2018.

Após o trânsito em julgado desta sentença e com a reabertura do Fórum para atendimento ao público, deverá a secretaria da vara proceder com a marcação de dia e horário para que as partes compareçam a fim de que seja anotada a CTPS do reclamante, contrato de trabalho por prazo determinado, data de admissão em 18/12/2017, função atleta de E-Sport, com salário mensal de R$970,00 e término em 17/12/2018.

DO PAGAMENTO DOS SALÁRIOS RETIDOS DE DEZEMBRO DE 2017 A NOVEMBRO DE 2018 E DE 17 DIAS DE SALDO SALÁRIO DO MÊS DE DEZEMBRO DE 2018, NO VALOR TOTAL DE R$12.092,67

Fonte:https://trt-1.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/1235582848/acao-trabalhista-rito-sumarissimo-rtsum-1011018120195010060-rj/inteiro-teor-1235582858

A análise jurídica dos contratos e acordos pré-contratuais demonstra-se fundamental, cabendo destacar, inclusive, que entendimentos atuais evidenciam que os profissionais de e-sports estão sujeitos e enquadram-se na Lei Pelé por analogia, já que não existe norma específica. Em especial, no que tange ao reconhecimento do vínculo e do caráter profissional da atividade:

Art. 3o O desporto pode ser reconhecido em qualquer das seguintes manifestações:

I – de modo profissional, caracterizado pela remuneração pactuada em contrato formal de trabalho entre o atleta e a entidade de prática desportiva;

Atualmente, tramitam no Congresso Nacional diversos projetos de lei que tratam dos e-Sports, cada um com abordagens distintas sobre o tema.

Os Projetos de Lei nº 3.450/2015 e nº 7.747/2017 propõem, de forma bastante objetiva, a inclusão de um artigo na Lei Pelé, reconhecendo os e-Sports como modalidade esportiva. Já o Projeto de Lei do Senado nº 383/2017 adota uma abordagem mais abrangente: além de definir o que são os esportes eletrônicos, o texto estabelece que os praticantes dessas atividades devem ser reconhecidos como atletas.

Contudo, esses projetos têm gerado intensos debates. Em especial, o PL 205/2023, que em seu artigo 5º prevê que não serão considerados e-Sports os jogos que contenham conteúdo violento ou de cunho sexual, que propaguem mensagens de ódio, preconceito ou discriminação, ou ainda que façam apologia ao uso de drogas. A consequência prática dessa exclusão é que, se determinado jogo não for enquadrado legalmente como e-Sport, seus jogadores também não poderão ser reconhecidos como atletas.

Essa exclusão causa grande preocupação, pois os jogos dessas categorias estão entre os mais populares e lucrativos do cenário competitivo atual, representando verdadeiros pilares da indústria de e-Sports. Exemplos incluem Fortnite, Counter-Strike: Global Offensive, Overwatch e Tom Clancy’s Rainbow Six Siege.

Portanto, tal projeto é considerado altamente controverso dentro da comunidade gamer. Isso porque, ao excluir justamente os jogos que movimentam grandes competições, audiências globais e cifras bilionárias, o projeto se distancia da realidade vivida pelo setor.

Neste sentido, profissionais de games podem buscar ajuda especializada para verem seus direitos trabalhistas reconhecidos. Do mesmo modo, é importante uma assessoria jurídica prévia ao fechamento de contratos, sobretudo diante do aumento do uso de criptomoedas (como Bitcoin e Ethereum) como forma de pagamento no mercado de e-Sports , o que pode ensejar risco para o atleta.

Neste contexto, embora os clubes utilizem contratos diversos, como acordo prévio para futura contratação, contrato de patrocínio ou inclusão de atletas nos quadros da empresa, é fato que tais modalidades podem ser questionadas judicialmente e demonstrado que na prática a relação era empregatícia. A tentativa de fugir do vínculo pode gerar penalidades aos clubes.

Associações têm surgindo com o  objetivo principal garantir que os atletas profissionais de e-sports tenham seus direitos trabalhistas protegidos, incluindo a assinatura da carteira de trabalho e o cumprimento das leis trabalhistas, a exemplo, com recomendações para que os clubes do Campeonato Brasileiro de League of Legends (CBLoL) firmem  contratos de trabalho com seus jogadores, seguindo as diretrizes da Lei Pelé.

Neste sentido, os  contratos de trabalho dos e-gamers devem seguir as mesmas regras que os esportes tradicionais, como o futebol. Na assinatura de contratos, deve-se observar critérios ligados à saúde dos atletas como cadeiras adequadas, computador, e insumos para sua saúde. O jogador também poderá cumprir carga horária definida a critério das partes.

Enquanto uma lei específica não surge, tem-se que o que é válido para atletas de forma geral, aplica-se aos jogadores profissionais dos jogos virtuais, sendo devidos aos atletas direitos trabalhistas, como férias, 13º salário, horas extras, FGTS, dentre outros, como direito de arena, que é o direito exclusivo das entidades desportivas de negociar, autorizar ou proibir a utilização das imagens de um espetáculo desportivo em que participam.

Destaque-se, por fim, que a informalidade pode comprometer patrocinadores, que podem ser considerados co-responsáveis por reparar os atletas. Assim, uma due dilligence poderá avaliar se um time está em conformidade trabalhista ou não. Como visto, a pejotização ou manobras para afastamento da relação trabalhista podem ser arriscadas e de fácil desconstituição, além de poderem ter reflexos criminais, tributários e previdenciários.

A indústria brasileira de jogos eletrônicos é a maior da América Latina e a 10ª no mundo em consumo. A assessoria jurídica especializada a atletas e times demonstra-se investimento de grande valia na prevenção de processos e perdas financeiras.

 

José Milagre, CEO da José Milagre Advocacia. Mestre e Doutor UNESP - [email protected]

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