Reflexões sobre o caso Andy Byron e Kristin Cabot no Show do Coldplay
O escândalo envolvendo Andy Byron e a famosa “Kiss Cam” durante um show do Coldplay em Boston reacendeu o debate sobre privacidade em ambientes públicos. Filmado ao lado de Kristin Cabot, diretora de RH da empresa onde trabalha, Byron tentou esconder o rosto ao perceber que estavam sendo exibidos nos telões, mas a imagem viralizou globalmente.
Mas, existe mesmo alguma ilegalidade em filmar alguém em um show? É possível falar em violação de privacidade em locais públicos? É comum que os ingressos para concertos incluam cláusulas informando que o público pode ser filmado e fotografado. Essa prática tem sido usada como base para dispensar o consentimento expresso, mas, isso é legal?
Primeiramente, estar em espaço público não significa que “tudo é permitido”
É importante deixar claro que mesmo em ambientes públicos, o direito à imagem e à privacidade se mantém. O simples fato de estar em um show não significa que sua imagem pode ser usada livremente, especialmente em contextos íntimos, constrangedores ou para fins comerciais. A palavra chave é: contexto! Byron provavelmente não imaginava que sua imagem daria a volta ao mundo — e que se tornaria material para memes e monetização em redes sociais.
Nos EUA, via de regra, aplica-se o princípio da reasonable expectation of privacy. Em locais abertos, essa expectativa é baixa, por isso muitos juristas norte-americanos não acreditam em uma reparação civil, mas ainda assim, o uso indevido da imagem pode gerar um processo, especialmente se houver monetização, zombaria ou exposição indevida.
No Brasil, qualquer pessoa pode filmar em local público, mas o uso da imagem de alguém identificável sem consentimento pode gerar responsabilidade civil, Especialmente se: a pessoa for exposta ao ridículo; houver finalidade comercial; ou o material for editado de forma a distorcer o contexto. “Em alguns casos, pode inclusive configurar crime — como ocorre nas situações de importunação sexual e registro não autorizado de conteúdo íntimo.”
Dentre diversas teorias e critérios, três são comuns em análises de casos desta natureza e fundamentais para serem sopesados: Contexto: A gravação foi uma cena geral ou focou de forma invasiva um momento íntimo? Existiu um aviso prévio? Sim existem “momentos íntimos” em ambientes públicos; Finalidade: O uso da imagem foi jornalístico, artístico ou com fins de entretenimento e viralização? Impacto: Houve intenção deliberada de constranger? humilhação, danos à reputação, prejuízos pessoais ou profissionais?
Notícias relatam que Byron informou que pensa em processar o Coldplay por não ter consentido com a filmagem, e mais uma vez, se isto ocorrer, o debate será sobre a forma pela qual o “consentimento” é coletado. Sabemos que, de todas as bases legais, o consentimento é a menos protetiva para o titular, pois é facilmente manipulado e pode ser obtido de forma viciada, por outro lado, ele pode ser inválido se não for livre, expresso, inequívoco, específico, e para dados sensíveis, destacado.
Mais uma vez veremos uma discussão se o tratamento de dados pessoais se deu com base em consentimento e se ele foi válido. Assim, vale elencarmos aprendizados importantes sobre este tema:
1) Em um mundo onde capturar e compartilhar nunca foi tão fácil, manter e implementar um guia de práticas que considerem ética, boas práticas de mitigação de riscos e direitos de privacidade é fundamental;
2) Cláusulas genéricas nos ingressos, em letras miúdas, não substituem consentimento livre, informado e inequívoco. Consentimento “presumido” não é suficiente. Se esta for base contratual, que seja clara, visível e com opções de opt-out (como pulseiras, assentos reservados etc.)Não existe consentimento por omissão. Se outra base for escolhida, como o suposto “legitimo interesse”, que se adote todas as análises prévias necessárias antes da adoção do mesmo, incluindo análises de balanceamento e impacto;
3) Facilitar e empoderar o titular de dados em eventos desta natureza envolve a aceitação de soluções criativas. Sinais como tapar o rosto ou um gesto de “não” em eventos ao vivo, podem ser interpretados como revogação tácita do consentimento, exigindo ação responsável na difusão da imagem ou cessação imediata. Não basta informar, é preciso respeitar o contexto;
4) Tecnologias de marcação, como braceletes de opt-out e outras medidas visuais poderiam ser adotados para pessoas que não desejam ser filmadas e rapidamente identificadas por registros de câmeras;
5) Deve-se evitar monetização de registros sensíveis ou, alternativamente, uso de recursos para desfocar pessoas. Publicar esse tipo de conteúdo visando engajamento ou lucro pode gerar responsabilidade civil.
Para empresas públicas ou privadas que promovem eventos com câmeras (shows, eventos esportivos, formaturas etc.) vale a reflexão sobre um plano de resposta à exposição indesejada, contendo:
1) Canal rápido para pedidos de remoção de imagem (ex: QR code no ingresso, formulário online, e-mail visível);
2) Equipe treinada para lidar com casos de viralização involuntária, com foco em mitigação de danos (ex: pedido de takedown, remoção de conteúdo);
3) Política pública de respeito à imagem e à dignidade das pessoas, comunicada previamente no evento e reforçada nos telões;
4) Alternativas visuais, com possibilidade de oposição razoável, como delimitar áreas de gravação, assessórios, áreas específicas e tecnologias de desfocagem facial, para pessoas que não desejam ser filmadas.
O caso Andy Byron mostra que é urgente repensar os limites éticos e legais da exposição em eventos públicos, especialmente diante do alcance irreversível das redes sociais. Também demonstra que podemos fazer nossa parte, enquanto titulares de dados, sabendo dos riscos em locais públicos.
Estar em local público não anula seus direitos. E expectativa de privacidade é reduzida, mas não anulada. Privacidade, dignidade e controle sobre a própria imagem são valores que devem ser equilibrados com o interesse público e a liberdade de expressão.
Isto certamente demandará de empresas de midia revisão sobre aspectos éticos e limites na captura de compartilhamento de todo e qualquer tipo de registros, ainda que em eventos públicos, sobretudo quando tem potencial para ferir privacidade, dignidade e possa causar danos. Precisamos pensar em balanceamento, análises de contextos e verificar se o interesse público está, de fato, do registro de imagens, acima de direitos individuais
José Milagre, Phd. Diretor de Perícia Digital e Resposta a Incidentes da CyberExperts. Advogado e Perito Especialista Dirreito Digital, Proteção de Dados e Crimes Cibernéticos. Autor de dois livros pela Editora Saraiva. Certificações CIPM, CIPT, CDPO IAPP, DPO EXIN, ISO 27701 Lead Implementer PECB, Graduação em Análise de Sistemas, Pós Graduado em Gestão de Tecnologia da Informação. Mestre e Doutor em Ciência da Informação pela Universidade Estadual Paulista UNESP, Presidente da Comissão de Direito Digital da OAB Barueri/SP, Instagram: @dr.josemilagre